domingo, setembro 30, 2007

Na outra esquina

- A minha vénia?
- Como?
- Onde está a minha vénia? Esqueceste a minha vénia!
- Vénia? Mas qual vénia? Desculpa...não estou a perceber.

Cesário crescentemente inseguro observou Luís a afastar-se dois passos, a mimar desiludidamente a vénia que lhe era devida. E finalmente percebeu.

- A vénia! A tua vénia! Eu peço desculpa, esqueci-me mesmo.
- Eu sei.

Cesário não sabia se haveria de disparar uma vénia ridícula pelo contexto mais do que pelo gesto. Só sua mão porventura se mexeu.
Prometeu para si que não mais se esqueceria. Ponderou se já seria tempo de passar ao cortês e equitativo "passou-bem". O embaraço não lhe deixou folga para o propor.

Durante anos Cesário manteve com Luís este estranho trato, não se falavam, pouco mais do que o nome de Luís sabia, mas insistia em cumprimentar dessa forma alguém que o intrigava, veniando. A primeira dessas vénias e sua razão objectiva é informação já inacessível de memória.
Nunca lhe passou pela cabeça que esse gesto pudesse ter ganho a dimensão de recordação e ritual indispensável em Luís. Nunca lhe passou pela cabeça que um dia se esqueceria desse gesto e que esse esquecimento lhe fosse sublinhado daquela maneira, numa esquina, escura, já nos outskirts do salão social por ambos frequentado.

- Será que meus gestos ganham vida própria e crescem para além de mim?
Por certo, por certo...tanto mais que esta noite é já a 3.ª vez que me acusam de faltar com cumprimentos, com rituais, com gestos que, silenciando-se e deixando falar por si o coro de 33 castrados com ambições académicas: impliquem o reconhecimento da presença do outro e do civilizado agrado que tal me provoca.

A noite de Cesário não poderia ser longa sob pena de sentir que passeava um traidor de si ao colo. Cara-baixa e saída rápida pela esquerda, esquiva e ataque de diversão e ala que se faz tarde!

pzzzzzzzzzz!


O coro foi encontrado, já aurora, pela equipa municipal de recolha de resíduos. Estava amontoado junto a um trucidado plátano, procurando resistir à acção dissolvente da humidade matinal. Dos 13 coristas que ainda não tinham seguido naquele triste samba pelas fendas da calçada, 10 vociferavam o nome do seu criador e 3 procuravam novo dono. Acabaram no papelão, todos.

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quarta-feira, setembro 26, 2007

Definições

O Borda D`Água para o ano de 2008, o qual será um ano bissexto, arriscou definir-me do seguinte modo:
"(...) são de natureza metódica, gostam da tradição; planeiam as suas vidas ao pormenor, agindo sempre moral e legalmente; seres solitários, tímidos e cautelosos; escolhem os seus amigos com cautela; o homem será algo melancólico, animoso e inclinado à guerra; a música, a arte e a natureza são de sua eleição; Preta, Chumbo, Ónix, Lótus, Jasmim".

Se me permitem, eu diria mesmo um verdadeiro chato.

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segunda-feira, setembro 24, 2007

Dixote #5

"Ó. O que eu já fodi à custa deste pêlo!!"

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domingo, setembro 23, 2007

Cagaço

Não sei se já te disse.

Mas eu tenho medo.
O que não faz de mim uma ave-rara, não pode motivar severos indicadores seja de que mão for. Antes humaniza-me:
Contextualiza-me nesta geração de pais que nunca deixaram de ser, antes de tudo, filhos. Devolve-me a esta sociedade ultra-securitária que vive no horror de viver chamando-lhe medo da morte, do acaso, do anoitecer.

Sei que o medo é ambivalente. É condição de sobrevivência e bloqueador de existência.

É o nosso labirinto. É condição primeira de submissão. É o produto cujo controle valerá ziliões de unidades monetárias ainda por nomear, mais ainda do que aquelas que já rendeu pelo tempo decorrido!
Há quem lhe chame casa, lar, atribuem-se-lhe nomes que desencorajem por si o arranhar do muro para uma espiadela sobre o pacato desconhecido que está pra lá, naquele esconso horrível onde os males se agremiam, sabes, a rua, eu bem os vejo a cochiçar para me virem ao corpo e à faiança que era de tua trisavó.

Há quem e há quem. Há quens para tudo e mais alguma coisa, mas para saber o que é o medo de caras, para o fitar, encarar e desafiar sem que a tremura passe a nosso nome próprio conheço pouco quem bem.

Agora atenta. Observa. Já viste quão bela é a corja de corajosos que te rodeia no seu segredo mais íntimo?

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quinta-feira, setembro 06, 2007

Não que estejamos a ficar presos à necessidade de colocar uma imagem por dia no esforço de preencher de luz um espaço escurinho.

Nada disso.

Seguindo a pista de Wenceslau de Morais chegamos a Kitagawa Utamaro (喜多川 歌麿), nascido algures em 1750 e enchendo o peito pela última vez em 1806; é ele o autor desta xilogravura.
Que mais poderemos acrescentar a respeito dela sem que não nos topemos imediatamente ultrapassados e abandonados por nós próprios?

Calafetando vapores ficcionais fico-me por aqui, suspenso na leveza das sedas, sentindo o peso das pregas. Agradecendo ao Tempo por nos trazer tão pouco de substancialmente novo a cada século.

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quarta-feira, setembro 05, 2007

Brobdingnag

Falamos de Lemuel Gulliver, capitão Lemuel Gulliver.
Falamos portanto de um dos irlandeses com maior traquejo veperino de que há registo e lauda, Jonathan Swift (1667-1745).

Jonathan Swift sacudiu-se entre as duas ilhas conforme os ventos dos homens, ministrando a voz de Deus e arguindo a dos homens.

Dublin, Moor Park, Kilroot, Rathbeggan, Dunlavin, Londres, Dublin "like a rat in a hole", de tentativa em tentativa se esfalfou a existência deste homem.

De que nos recordamos? "Travels into Several Remote Nations of the World, in Four Parts, by Lemuel Gulliver, first a surgeon, and then a captain of several ships", ou se preferirem, "Gulliver`s Travels".

E daqui a nossa memória dispara imediatamente, sem dar tempo à equipa adversária que esprema a botoeira garrida: Lilliput!
Entretanto há quem quebre a cabeça procurando decifrar, inventando toda uma hermenêutica, a "word machine" (um gigante mecanismo usado para escrever frases e livros) relatada por Gulliver.

Por enquanto fico-me pela praia deste esforço, com os pés bem enterrados na areia.
Porquê que nos lembramos imediatamente de Lilliput?
Porquê que a obra que não se leu é representada imediatamente por esta nação, que juntamente com uma outra distante por um acaso de um canal, Blefuscu, não representa nada mais que um bando de irados pequenos homenzinhos, mais pequenos do que nós, que se degladiam em nome da maneira correcta de cozer um ovo?

Porquê que desta sátira não guardamos a imagem de Brobdingnag? Nação de gigantes, grandes como igrejas, governada por um rei iluminado que dos europeus guarda uma ideia pouco lisonjeira e decreta leis simples e fáceis de seguir?

Este capricho da memória comum parece-me riquíssimo, mas, que diabo, se o que não é mensurável não cabe no mundo este post é também mais uma cavaca atirada à fogueira da insignificância, uma caustica urinadela em lado nenhum, não é assim?

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terça-feira, setembro 04, 2007

Idemitsu

Cesário sabia-se céptico. Ligeiramente hipócrita quando achava correcto sê-lo e trancafiadíssimo quando lhe parecia dever ser cauteloso.

Naquela noite arriscou para lá do conhecido. Lançou à mesa uma questão de sua algibeira emocional.
- E a vocês? Já vos aconteceu serem chamados a um compromisso inocente, por alguém, para no entretanto, durante o tal compromisso, pá, tão corriqueiro como, eu sei lá, aliviar uma torneira, arrastar uns trastes, verificar níveis de ar nos pneus, um lanche, um café, pintar uma sala, ir ali, verificarem que a questão é mesmo outra, mais íntima... capaz de vos arrancar um franco sorriso?

Os amigos à vez responderam com e sem palavras, num coro de que se ouvia "Isso não existe!" e de que se via uma cabeça que baloiçava negativamente.

A pergunta foi recolhida da mesa discretamente e sem carinho.
À espera de melhores dias de qualquer um dos presentes, ou da raça, ficaria.

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domingo, setembro 02, 2007

Carla e Alexandre


Carla e Alexandre fazem-no.
Fazem algo que nem tu nem eu fazemos!
Aceitam a eterna mudança e a constante tremideira.
Praticam o efémero.

Marcaram a areia junto ao mar, nela fixaram um desejo oculto.
Não me apercebi que tivessem ensaiado qualquer manobra de detenção das marés ou de si próprios nem que por tal razão tivessem desistido de desejar.

Não sei se pensaram sequer nisto. O que não me preocupa em nada.

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