quinta-feira, outubro 01, 2009

de memória

Ainda um destes dias discutia com um conhecido os efeitos perversos que a memória e o recordar vão projectando no fluir do existir com o avançar dos anos.
Ridículo esse exercício, quando praticado por duas pessoas ainda em idade de andar com o nariz apontado às estrelas, mas a verdade é que já nos queixávamos, queixávamos.
Queixávamo-nos do peso, da recorrência, do temor, da vil constatação de que algo havia já falhado sem que grande remédio lhe pudesse acudir.
Por essa altura a memória atravessou-me uma outra conversa, algo solanvacada por se entretecer em língua que entre todos não era a dos seus pensamentos, mas que ainda assim permitiu que alguém, mui douto em linguagens binárias, resolvesse o assunto declarando friamente que a memória era algo que não existia.
Confesso que esse é já ribeiro longo demais para que o atravesse com a minha vara. O mais altaneiro sininho afirmativo que a este propósito consigo tilintar é que a memória não é algo - ou alguém - em quem se deva confiar.
Pois que ainda nesse um destes dias e após ter lido de uma só vez um jornal diário por inteiro, enquanto me aprestava a apear na estação de destino, resolvi testar-me.
"Amigo Zatring, desse jornal que tão impecavelmente leste qual foi a notícia que mais te impressionou?"
A resposta tardou...tardou, impacientou-me, e quando se dignou a assumir uma qualquer forma distintiva lá me apareceu aquela habitual fronha de "não sei", "deixa ver...", nada! Ah! Espera, foi a notícia "Congressista pediu desculpa ao Presidente" (bom, um congressista norte americano chamou "mentiroso" a Barrack Obama durante o discurso deste às duas câmaras do Congresso, azar, ouviu-se mesmo na TV e o congressista lá pediu desculpa pela sua intervenção "lamentável", desculpas aceites), era uma notícia muito pequena, topo da página 15.
Mas, no preciso momento em que esta solicitação ao banco de memória era correspondida eu sabia também que não tinha sido essa a notícia que mais me tinha impressionado. Mas qual fora afinal? Raios, só após um trajecto a pé e um outro de automóvel recordei (ou decidi? ou formulei?) que havia sido esta: "De Portugal chegam-me elogios e um silêncio de morte, de todos os lados - como essa pátria, tirando o povo e uns raros, é vil canalha, e mesquinha...(e a minha amargura de erudito é a descoberta de que realmente o foi sempre - pelo menos do século XVII em diante, quando realmente não mereciamos senão ter continuado espanhóis). E, tudo isto, sem estímulos e sem calor humano é uma cruz muito triste de carregar".
Imagine-se quanto pesava a memória de Jorge de Sena.

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