segunda-feira, outubro 20, 2008

(Exercícios de) Estruturas I

Lídia sentia um profundo sossego em dias assim.
Dias sem oscilações, sem luz, sem gente, dias que teimam em ser assim, vazios. Sem que alguma vez o tenha dito de si para si, Lídia sentia bem fundo que o encanto desses dias residia precisamente em serem eles assim, vazios como ela. Era segurança que lhe caía pelos ombros, a de saber que nesses dias nenhuma euforia lhe seria exigida.
E este era o mais profundo eco que de si tinha.
Não que bolas coloridas, sorrisos flanantes ou homens corteses enfurecessem Lídia.
Nada disso, apenas sentia que a energia que outros experimentavam, a ânsia das pequenas e das grandes coisas, eram para si desconhecidas; eram-lhe perfeita e redondamente indiferentes.
As horas que Lídia já passara com suas amigas ouvindo-as construir toscos castelos de nuvens não tinham conta, como incontáveis eram já também as horas escorridas supostamente acompanhando-as em exercícios vários de socialização, pois sempre estava nos locais e nas horas mas nunca na partilha desses momentos, no entendimento da utilidade e valia de todas aquelas tesouradas no cabelo ou poeirização do rosto, na veneração do trapo, da depilação da verve e das estrelas.
Não entendendo porque razão - tendo já desistido de tal perceber - ainda assim mantinha todos esses hábitos, pelo que Lídia não era propriamente um ser ausente ou repugnante à vista.
Nem isso nem o contrário.
Lídia era um normal caso de opacidade adquirida e mantida.
E tal se devia a um acaso, na sua modesta opinião. Não culpava seus pais, o local onde crescera, a vizinhança da infância nem as suas opções, também elas casuais, quanto aos estudos que fizera e não fizera. Os seus sucessos e insucessos eram momentos marcados na sua memória como dias de calendário que ao caírem na conversa não lhe provocavam qualquer espécie de comoção. Os mais íntimos afiançavam que já se encontrava para lá de um caso agudo de timidez, mas ainda assim penduravam-se na convicção de que tudo não passava de um mero retraimento do seu ser, uma delicadeza ou mesmo uma observação silenciosa. No fundo, acreditavam que Lídia lá se traria por dentro de si própria em azáfamas várias, arrumando, catalogando e cuidando de um tesouro.
Lídia sabia que dentro de si pouco havia para além de corredores, salas, escadas, quartos, quartos, quartos, caves e espaço. Havia sobretudo espaço, espaço percorrido por ventos que Lídia pretendia sempre sentir como brisas, ou sopros ou qualquer outra coisa desde que substancialmente serena e invisível.
Sentia-o nesse preciso momento, ali sentada na muralha com os olhos por acaso mirando o mediterrâneo.
Fora por insistência dos seus colegas da imobiliária que Lídia tinha acedido a entrar naquela viagem-confraternização de todos os nós da rede portuguesa. A princípio pareceu-lhe inusitado embarcar num avião cheio de pessoas, para mais quando todas elas estariam convencidas que deveriam ser simpáticas, e apenas por isso suavam de simpáticas. Desculpou-se com os zeros do preço e guardou no bolso que não lhe apetecia passar um fim-de-semana a discutir comissões, primes, subprimes, superprimes, formações e euros e milhares e marquises e logradouros com video-vigilância. Parecia-lhe à distância que seriam ruidosas e quadradas conversas e talvez preferisse mesmo ficar a ouvir o silêncio do open space, como então se adivinhava, liberto de bips e trins-tintins e apenas atravessado pelo vaporoso tlin do micro-ondas.
Mas agora Lídia estava ali, de braços cobertos e cingidos ao corpo sentindo a brisa quente e seca do mediterrâneo. Agora não havia nada a fazer e Dubrovnik até lhe parecia um bom sítio para se deixar estar. E deixou-se.
Quando lançou os seus sapatos rasos muralha abaixo, apoiando-os sobre umas pedras não suficientemente alisadas para seu gosto, constatou que a vociferia excitada daqueles que tentavam enredar os telhados nos relatos dos seus sucessos já se encontrava longe, longe o suficiente para não se ver.
Não desarmou, respirou um pouco mais fundo aquele ar que lhe sabia a sal e castanhas e apressou a passada, reparando que sua mão segurava a alça de sua bolsa com uma força que a si própria pareceu desproporcionada em relação à tarde e ao rodopio de gente que em manadas sorria ao nada e fotograva-se mutuamente. Lídia começou a abrandar. Convenceu-se que estava de facto sozinha e que ninguém deveria andar à sua procura e a ideia agradou-lhe, agradou-lhe mesmo poder ser ela a exercitar o decidir e a partir daí ser senhora dos seus pés. Iria ter ao Hotel ao entardecer, concerteza que daria com ele antes que nele dessem pela sua falta.

Sentar, o zumbido que começava a sentir no abdómen aconselhava-a a sentar. Onde então? Lídia considerou que uma esplanada não muito concorrida seria o ideal para si, sim, tomar um refresco com gás escondida sob o sol seria o seu ponto de início daquela sua tarde.

No Stradum existia uma esplanada que lhe parecia suficientemente discreta para que não se sentisse uma intrusa, escolheu uma mesa afastada do passeio público e sentou-se. Poisou-se a si e à sua bolsa e ouviu a porta do metropolitano a fechar-se, experimentou aquele balanço e correu uma a uma aquelas caras lívidas de qualquer qualidade humana. Pois é, que tonteria que tudo aquilo é, dizia-se Lídia no momento em que o metropolitano chegava à estação de todos os dias e o rapaz nervoso de bandeja começava a vacilar no seu sorriso profissional. I want a Gin-tonic, please. Lídia, apercebendo-se do pedido que acabara de fazer decidira no mesmo momento mantê-lo. Sua mãe, afinal de contas, não tinha vindo consigo, e fosse como fosse, por uma vez não se encontrava com ela na acanhada sala num diálogo triangulado com um televisor que impunha tema, volume e destino à conversa de ambas.
Talvez conviesse, quando chegasse ao hotel, telefonar “está tudo bem, não te preocupes, tudo muito bonito, pessoas simpáticas, não é mais caro que aí, e vocês? Sim, o hotel é bom, não, não encontrei ainda, não me esquecerei.”. Haveria também de comprar umas recordações, embora desta vez não lhe apetecesse mesmo nada. Para que raio quereriam as pessoas receber objectos que assegurassem que alguém, que não elas, tinha ali estado? recordações do que não se viveu servem para quê?
Bebericou seu copo alto e acomodou-se à cadeira, finalmente se sentou naquela praça. Aos poucos, a premência dos afazeres que vinha ordenando foi-se diluindo no lugar em que estava.
Acenou ao miúdo louro que rodopiava junto à sua mesa sob a indiferença atenta de seus pais, porventura todos eles oriundos da Europa Central. No passeio público via pessoas que sorriam a tudo o que aparentava vetustez e sentia para com elas uma cumplicidade que a pôs a si a tentar adivinhar origem e destino de cada uma delas. Entreteve-se a si própria debruçada sobre a mesa, sem se aperceber que o fundo das suas costas se encontrava descoberto. Cara Lídia, e que tal agora atribuíres-te um destino? Não era tarefa fácil mas ainda assim sorriu e achou antipática a ideia de ter um bilhete de ida e volta. Antes de cumprir o regresso talvez não fosse tolo de todo continuar a visitar Dubrovnik.

Inquietou-se procurando o empregado impaciente e deu-lhe a entender que pretendia saldar sua despesa. Começou a verificar se todos os seus pertences se encontravam consigo e foi assim que a surpresa tomou conta de si ao levantar o olhar e esbarrar numa cara que a mirava de forma séria.
O homem, mantinha-se de pé e mudo com as mãos apoiadas na mesa de Lídia. Lídia não sabia o que pensar e o que fazer mas ainda assim não se quis confiar ao impaciente empregado. Olhou também o homem esfíngico, reparou na sua barba grisalha e na máscara de rugas que lhe fluía dos olhos negros e implacáveis sem que reparasse na força que as mãos dele encerravam, Lídia lançou o seu queixo para cima. O homem continuou como estava e apontando para Lídia perguntou-lhe alguma coisa. Mantendo o dedo apontado ao peito de Lídia o homem experimentou outra e outra língua até disparar num inglês cheio de contorções eslavas “Where are you from?”. Portugal, disse Lídia sem muita certeza do que dizia e com ainda mais suspeitas a respeito do que isso representaria para aquele homem que agora ali cerrava lábios e olhos e abanava lentamente a cabeça. “You are all criminals! You are responsible for the end of my family. You shouldn`t be here!”. Um louco! Trata-se concerteza de um louco, e agora?! Que faço?
Lídia manteve-se quieta e em silêncio agarrando as suas coisas e procurando um ponto de fuga. O homem continuava a apontar-lhe um dedo tremente e repetia constantemente “all my family died or disappeared and you are responsible, you shouldn`t be here!”, “why have you done this to us?”, Lídia acossada entendeu que não se devia calar, what have i done? You supported and defended all this nazi croatian bullshit! You and your planes and bombs and dirty NATO, why haven´t you stopped them?”. Lídia percorria toda a actualidade que lhe permitisse perceber a que se referiria aquele homem mas apenas se lembrava de um conflito armado, sangrento é certo, mas tudo se tinha passado mais a sul ou a leste, em Sarajevo, ou no Kosovo, e em ambas as situações o seu país tinha participado, sim, mas ao que sabia para salvar vidas e calar as armas, definitivamente não percebia aquele homem que continuava a perguntar-lhe why? Why haven´t you come to help us? Why you haven´t done a thing for us? We were not muslims, was it why you abandon us? O homem decidiu e sentou-se e Lídia reparou que as suas roupas não eram propriamente novas e as mãos, sempre poderosas, apresentavam-se gretadas, ásperas e de unhas amassadas, naquele corpo maciço que não era dado a movimentos bruscos.
Sentado, o homem respirou fundo e sem olhar Lídia disse “my name is Djukic”, i am Serb from Krajina and since 1995 I dont have nowhere to go inside this nazi state.
Lídia sentiu um aperto no peito ao invés do alívio por saber que aquele homem não lhe quereria mal. I am Lídia, and i don´t know what you are talking about.”
Djukic soergueu os ombros e deixou-os cair juntamente com os olhos, nunca ninguém sabe o que se passou na minha terra, o que aconteceu à minha família e a mim. Lídia, embora estivesse sentada na sua mesa estava muito mais tensa que Djukic, de facto não sei o que aconteceu e não julgo que tenha alguma responsabilidade no sucedido. Mas tens, tu e os teus não levantaram a voz, não votaram, não protestaram e mandaram para aqui vossos familiares em armas que ficaram simplesmente a olhar para o que os filhos da puta croatas nos fizeram, ainda não acredito que povos tão civilizados e ricos como vocês pudessem ficar a olhar para as nossas casas em chamas, as mulheres reviradas de medo e os homens a serem levados para não regressarem...tudo isso vocês viram e nada faziam, “cumprimos ordens” diziam vocês, que vos pariu!. Senhor, nós viemos cá evitar isso mesmo. Não, vocês apenas protegeram os muçulmanos da Bósnia sei lá eu porquê! Ainda Lídia procurava juntar uma frase que pudesse libertá-la do desconforto das acusações de Djukic quando este se levantou, pediu desculpas pelo incómodo, agarrou pelo nó um saco plástico até então invisível e abalou indiferente pelo trilho mais reservado da Praça. Lídia recolheu de imediato o troco para um bolso, levantou-se emaranhando-se na cadeira mas ainda assim conseguindo sair ela também para a praça. Não queria seguir Djukic, antes pelo contrário, aquele homem parecera-lhe irremediavelmente sinistro e perdido dentro de si, um incómodo pelo qual definitivamente não queria passar de novo.
Só depois de se decidir a procurar o caminho para a fonte de Onófrio Lídia conseguiu respirar uma leveza e soltar uma risadinha, era afinal o gin! E que estouvada estou a ser ao atravessar estas ruas nesta velocidade de quem foge.

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